Omnia mea mecum porto

Tenho uma biblioteca de velhos livros. Tão puídos alguns e rotos outros que já não sustentam as capas e as costuras. Todavia, há engano naquele que pensa que esses livros são monumentos em papel danado para ideias antigas. Os livros guardam em si segredos para quem deles são distantes. Escritas há séculos, basta o leitor contextualizar o amontoado de suas páginas amarelas – ou acentuar paralelos entre os fatos descritos e os acontecimentos atuais – e pronto, os pensamentos dedutivo e indutivo disparam fagulhas como se fossem um foguete a carregar as últimas esperanças da humanidade rumo às estrelas remotas.

Eis aqui o que já sabem os iniciados na boa arte da leitura: o contexto do escrito pode ser diverso, porém o espírito do homem é sempre o mesmo. Não importa se homem idealizado pelo escritor seja soldado no portão de Tróia, arquiteto egípcio a calcular as pirâmides, miserável gladiador banhado em sangue na arena, ou triste poeta exilado, porque é o espírito do homem que nos aparecerá no livro – espírito regularmente cheio de dúvidas e de ordinário sem certeza alguma.

Tive uma compañera sentimental – bela expressão castelhana para dizer que uma namorada é mais do que uma namorada! – que um dia ameaçou jogar meus velhos livros no lixo. Essa simples sugestão causou em mim grande choque. Como eu poderia estar vivendo com alguém que desprezava meus livros, que desejava substituí-los por uma decoração nova, figurativa e sem serventia alguma? Odi et amo e imediatamente passei a odiar o que até então só merecera o meu mais sincero amor, nascido na infância e que havia esperado muitos anos para se revelar. Omnia mea mecum porto! Como explicar à ex-amada que ao renegar meus livros, ela abjurava o que sou, porque tudo que tenho são meus livros e tudo que é meu carrego comigo?

Já mudei várias vezes de casa e cidade. Nessas mudanças, perdi quase tudo, mas tenho lá meus livros cada vez mais leves pelos furos das traças, cada vez mais graves e sisudos pelo passar dos anos. Perdi um amor que não me compreendeu no amor aos livros. Mas não me arrependo dessa perda, pois amor que não compreende o outro não é amor, é um arranjo florido para coisa que já nasceu morta.

(J.F. Nandé, 21/11/2011)



Expressões latinas no texto:

Odi et amo: Odeio e amo. Palavras iniciais do mais famoso poema de Catulo (Caius Valerius Catullus – séc I a.C).

Omnia mea mecum porto: Tudo que é meu carrego comigo. (Bias de Priena (590-530 a.C, um dos sete sábios da Grécia Antiga, quando foi forçado a deixar sua cidade e não levou seus pertences).

2 comentários:

Ana Coeli Ribeiro disse...

"Os livros guardam em sí segredos para quem deles são distantes.."
"Pois o amor que não compreende o outro não é amor , é uma arranjo florido para coisa que já nasceu morta." Pulchereim
Luz!
Ana

Ana Coeli Ribeiro disse...

Quando estava lendo já estava vendo sua bliblioteca e seus antigos e amados livros, não pude deixar de rir com o drama da situação. Os livros são entidades que vibram com seus amantes, portanto, muito difícil se desfazer deleles, não é?
Luz!
Ana