De gustibus non est disputandum



O mau gosto está na moda, porquanto a moda também se rendeu ao mau gosto. De fato, neste melequento início de século, sem ideologias sinceras e que valham à pena, do homem vazio e sem perspectivas, da educação indigente e da cultura dos bugios que a tudo arremedam e macaqueiam, o mau gosto é apenas mais um penduricalho aos que usam gigantesco piercing naquele órgão povoado pelo vácuo, o cérebro, e que às vezes é vagamente lembrado por seus portadores.
Nas ruas, nos programas televisivos, nas propagandas, ou nas novelas e literatura barata, alguns símios pregam que o genial na vida é ser diferente. Perfeitamente de acordo, a vida não é feita em fotocopiadoras, temos que ansiar ao diverso. Entretanto, esse diverso, esse diferente, pode ser inteligente, porque não há graça alguma em se copiar o estúpido, atributo de quem deixou de pensar por si só.  Alguém há de buscar o velho argumento: de gustibus non est disputandum. Sim, isso é uma bela verdade da sabedoria latina: sobre os gostos não se discute. Mas notem bem, os latinos dizem “os gostos” e não o “mau gosto” somente, que é algo perfeitamente discutível.
 O mau gosto cínico e militante é um narcótico do mundo moderno e seus sectários vivem em eterno delirium tremens, sempre em crise por não terem dose suficiente de sua droga, mas com faniquitos e gritinhos de contentamento ao determinarem o comportamento do novo homem kitsch – palavra de origem alemã (verkitschen), a qual não tem correlata em nossa língua e que corresponde mais ao menos a objetos de valor estético inferior . E quem é esse homem kitsch ou quem é essa mulher kitsch?
Ora, olhe ao seu redor. Ordinariamente, eles são cópias pioradas de algum artista, desportista, ou simplesmente de quem está curtindo seus 5 minutos de fama. Têm cara de paisagem e gostam de ser vistos como um coqueiro que nasceu em solo lunar, todavia não passam de oco pau-d’alho em praia barata mesmo. Buscam atenção para o que aparentam ser e jamais para o que são de fato. E o mais importante: nunca ousam coisa inteligente, pois a inteligência está fora de moda, assim como pensar no próprio ridículo.
Sei que você ficou com medo de encontrar um kitsch pelo caminho, ou encruzilhadas. Mas, sinto informá-lo, eles são inevitáveis! São mais comuns do que as flores de plástico, chaveirinho com escudos de time de futebol, anões de jardim, bobagens dos livros de auto-ajuda e músicas do estilo sertanojo e pagodão. Por isso reze muito! E se topar com um ser kitsch não respire!  A vulgaridade, a inépcia, a ausência de conteúdo e o mau gosto costumam ser contagiosos.  
(J.F. Nandé - 24/11/2011)

Expressões latinas do texto:

De gustibus non est disputandum: Sobre gostos não se discute. (provérbio romano).
Delirium tremens: delírio alucinante. (Em medicina: tremor que viciados experimentam durante a abstinência da substância entorpecente).

Et tu, Brute?



A corrupção é uma praga que atinge a política brasileira e de resto todo o mundo. Creio que política e corrupção foram criadas no mesmo caldeirão do capeta e bem jutinhas. São coisas antigas, aquecidas pela fogueira do mesmo quintal em que homem desenvolveu seu espírito gregário e resolveu delegar funções administrativas para um síndico da aldeia. Deduz-se que as famosas frases “essa assinatura não é minha”, ou “eu não sabia de nada”, ou “perguntem aos meus assessores”, ou “cunhado não é parente” remontam dessa época que também marca o nascimento do puxa-saco, conhecido algures e alhures como lambe-botas.

Mais adiante na história, e agora com registros mais ou menos confiáveis, a Roma antiga cai pela corrupção e o uso indiscriminado de punhais nas costas das vítimas e quando não, veneno na comida e bebidas. A decadência romana vem do suborno, tráfico de influência, dilapidação do erário, roubo, assassinatos e da venda de cargos públicos, inclusive os de generais e o de chefe máximo do Estado. A coisa ficou mais descarada depois da morte de Júlio César (Caius Iulius Caesar, 100 - 44 a.C) Ora, se é possível assassinar um ditador de “origem divina”, como poupar outros cidadãos que se colocavam temerariamente no caminho dos conspiradores e desonestos? É bom que se diga que César morreu depois de receber oito punhaladas nas costas. Os assassinos tiveram destino semelhante ao de César, até mesmo Brutus (Marcus Junius Brutus - 85- 42 a.C), familiar do ditador que teria recebido suas últimas palavras: “Et tu, Brute?” . Mas sobre isso não há consenso entre os historiadores e dramaturgos. Para Willian Shakespeare (1564-1676), quem deu a última palavra foi Brutus, ainda com o sangue de César fresquinho nas mãos: “...Then fall, Caesar”  – então caia, César.

Bom, essa discussão agora nos parece inútil, porque não importa aqui a frase final que marcou o assassinato do ditador. Factum atque transactum est, o que restou foi apenas a moral da história, ou seja, quando o assunto é poder, tudo vale, pois o silêncio alcançado pelos conspiradores certamente deveu-se a promessas e suborno a seus pares no Senado. E eis aqui nossa abordagem inicial: a corrupção que se abraça à política e ao político e muitas vezes num abraço de afogado. Tem gente que prefere jogar uma vida fora, o próprio nome na lama, para garantir vantagens privadas com a res publica.

Por essas razões, os corruptos mentem e sustentam a mentira na maior safadeza. Quando vejo governantes – e aí pode ser presidente, magistrado, ministro, deputado, senador ou até mesmo um vereadorzinho de meia pataca –, jurarem que miado de gato é latido e que rolar na sujeira é a melhor maneira de se limpar, sinto em mim, de profundis, instintos primitivos não iguais, porém semelhantes aos que motivaram Brutus e seus desafortunados amigos, porque a corrupção é a raiz da miséria e indigência intelectual de boa parte de nosso povo. Mas depois me acalmo, porque creio que, mais cedo ou mais tarde, justiça será feita, mesmo que seja póstuma, ao se escancararem as tristes biografias dos corruptos nos livros de história.

(J. F. Nandé, 23/11/2011)

Expressões latinas deste texto

Et tu, Brute?: Até tu, Brutus?
De profundis: Das profundezas (Salmo 130).
Factum atque transactum est: Está feito e já passou (Marcus Tullius Cicero, 106 – 43 a.C.).
Res publica: A coisa pública.

Vinum vita est

Taverna romana em Pompéia


No auge do Império Romano, na época de Augusto (Gaius Iulius Caesar Octavianus Augustus, 63 a.C – 14 d.C) avaliava-se em um milhão o número de habitantes de Roma – capital do mundo e protótipo das metrópoles modernas. Os seus moradores enfrentavam problemas semelhantes ao que enfrentamos nas urbes hodiernas. O abastecimento de água e outros serviços públicos funcionavam satisfatoriamente, porém, o trânsito era caótico. O próprio Augusto teve que tomar uma medida drástica, proibiu a circulação de carroças que abasteciam o mercado durante o dia. Vamos lembrar que nesse tempo, a iluminação noturna era feita na base de tochas e que os ladrões e mulheres de vida fácil preferiam o período noturno para o exercício de suas vetustas profissões.
O bom romano geralmente não comia em casa. Depois de ir ao fórum para colocar a fofoca em dia e ser vítima de encontrões e esbarros nas vias, ele se alimentava em sítios parecidos com os botequins de nossas ruas. O fast food latino, a taverna, servia bons pratos de frutos do mar e grãos – é meu amigo, o Mc Donald’s não é ideia nova, com a vantagem de dieta mais saudável, nada de comida com gosto de isopor!
Afora a boa alimentação, nas tavernas servia-se o vinho, a bebida socializante que reunia ao seu redor o senhor e o plebeu, os oficiais pretorianos e seus soldados, magistrados e legisladores, governantes e conspiradores. O vinho era considerado pelo romano magnífico remédio para espíritos deprimidos e uma forma de se posicionar dentro de uma sociedade estratificada – cidadão, plebeus e escravos. “Vinum vita est”, dizia o novo rico Trimalquião ao apresentar seus melhores vinhos numa festa descrita por Petrônio no romance Satyricon.  
Hoje, renovaram-se os dedos, mas os anéis são os mesmos. Depois de dois mil anos, o mundo mudou um pouquinho, mas não está tão civilizado como pretendemos e pensamos. Nosso planeta conta com sete bilhões de almas – com boa parte delas vivendo em megacentros urbanos e passando o sufoco de suas misérias. As sociedades ainda amarguram estratificações, a mais das vezes disfarçadas nos figurinos baratos dos plebeus e escravos pós-modernos. O trânsito é caótico em São Paulo, Nova Iorque, ou Nova Délhi, e por lá também circulam prostitutas e ladrões emprenhados em seus ofícios.
Em espírito nada mudou, piorou até, e isso devido à escala: se tínhamos a vaidade de um Trimalquião querendo afirmar o seu novo status quo numa grande festa, hoje temos vários novos ricos lançando mão da mesma estratégia. Caso você more em uma grande cidade, abra o jornal e verifique nas páginas dedicadas aos socialites quantos novos ricos existem por aí servindo rios de vinhos em festas cafonas para provar a nova condição social. Nada contra, é de graça e afinal vanitas vanitatum omnia vanitas. Mas que pelo menos sirvam vinho de boa qualidade, como os novos ricos romanos, pois nele está a vida e in vino veritas!   
(J.F. Nandé – 22/11/2011).

Expressões latinas neste texto:

Vinum vita est : O vinho é vida.
In vino veritas: No vinho está a verdade (Alceu, poeta grego, 630 – 580 a.C.).
Status quo: O estado em que... (como era utilizado em latim, no sentido de coisa anterior). Hoje utilizamos essa locução para posição (social, status) ou conjunto de direitos e deveres.
Vanitas vanitatum et omnia vanitas: Vaidade das vaidades e tudo é vaidade. Palavras do livro bíblico do Eclesiastes, “Vanitas vanitatum, dixit Ecclesiastes, vanitas vanitatum et omnia vanitas”. Aqui, vaidade pode ser traduzida por futilidade ou fugacidade das coisas terrenas.

Omnia mea mecum porto

Tenho uma biblioteca de velhos livros. Tão puídos alguns e rotos outros que já não sustentam as capas e as costuras. Todavia, há engano naquele que pensa que esses livros são monumentos em papel danado para ideias antigas. Os livros guardam em si segredos para quem deles são distantes. Escritas há séculos, basta o leitor contextualizar o amontoado de suas páginas amarelas – ou acentuar paralelos entre os fatos descritos e os acontecimentos atuais – e pronto, os pensamentos dedutivo e indutivo disparam fagulhas como se fossem um foguete a carregar as últimas esperanças da humanidade rumo às estrelas remotas.

Eis aqui o que já sabem os iniciados na boa arte da leitura: o contexto do escrito pode ser diverso, porém o espírito do homem é sempre o mesmo. Não importa se homem idealizado pelo escritor seja soldado no portão de Tróia, arquiteto egípcio a calcular as pirâmides, miserável gladiador banhado em sangue na arena, ou triste poeta exilado, porque é o espírito do homem que nos aparecerá no livro – espírito regularmente cheio de dúvidas e de ordinário sem certeza alguma.

Tive uma compañera sentimental – bela expressão castelhana para dizer que uma namorada é mais do que uma namorada! – que um dia ameaçou jogar meus velhos livros no lixo. Essa simples sugestão causou em mim grande choque. Como eu poderia estar vivendo com alguém que desprezava meus livros, que desejava substituí-los por uma decoração nova, figurativa e sem serventia alguma? Odi et amo e imediatamente passei a odiar o que até então só merecera o meu mais sincero amor, nascido na infância e que havia esperado muitos anos para se revelar. Omnia mea mecum porto! Como explicar à ex-amada que ao renegar meus livros, ela abjurava o que sou, porque tudo que tenho são meus livros e tudo que é meu carrego comigo?

Já mudei várias vezes de casa e cidade. Nessas mudanças, perdi quase tudo, mas tenho lá meus livros cada vez mais leves pelos furos das traças, cada vez mais graves e sisudos pelo passar dos anos. Perdi um amor que não me compreendeu no amor aos livros. Mas não me arrependo dessa perda, pois amor que não compreende o outro não é amor, é um arranjo florido para coisa que já nasceu morta.

(J.F. Nandé, 21/11/2011)



Expressões latinas no texto:

Odi et amo: Odeio e amo. Palavras iniciais do mais famoso poema de Catulo (Caius Valerius Catullus – séc I a.C).

Omnia mea mecum porto: Tudo que é meu carrego comigo. (Bias de Priena (590-530 a.C, um dos sete sábios da Grécia Antiga, quando foi forçado a deixar sua cidade e não levou seus pertences).

O tempora, o mores!


Sou um matuto, desses de criação bruta e feito para o trabalho. Desses que têm no Sol o relógio para o bom combate e que trazem como segundo ofício, entre uma enxadada e outra, a arte de matutar, pensar ad infinitum na morte da bezerra e sua imponderável influência na ordem universal.  E foi matutando que aprendi a respeitar as palavras, não o que elas dizem simplesmente, mas o que elas nos escondem, porque palavra é igual gente, em poucas se pode fiar com tranquilidade d’alma e espírito desarmado. A maioria delas guarda olhares dissimulados, mente no meio das verdades, pois que, amiúde, não estamos dispostos a ver o nu da verdade, as suas cicatrizes mal curadas, os seus enrugamentos emprestados pelos anos em que se viu cativa da ignorância.

Marcus Tullius Cicero (106-49 a.C)
Neste século que se iniciou em muxoxos para a cultura, nos juvenis arroubos desconstrutivos em nome de uma pretensa modernidade, estamos sob a égide de violenta censura contida no “politicamente correto”. Neste triste século XXI, chegamos ao cúmulo de colocar cabresto em nossos próprios pensamentos para não descontentar aos que cultuam verdades convenientes, grandes mentiras para não encrespar as ondas que embalam suas rotas naus, construídas sobre proposital falta de ciência de nosso povo, forjadas por uma educação indigente, que é proposta por uma elite esponjosa e que ganha dinheiro na especulação financeira e na espoliação dos que produzem e trabalham.

O tempora, o mores! – lamentava-se Cícero em seus discursos no Senado Romano. Ó tempos, ó costumes! – também deve ser nosso lamento. Somos miseráveis cordeiros a assistir, impávidos, a transformação de palavras em grandes expressões idiotas só para dizer que a noite não é negra como pensamos e vemos que é – que o branco não é branco e que o preto não é preto. Ó tempo, ó costumes em que os envergonhados racistas criam expressões para mostrar que o racismo estava na cor, na palavra que descreve a cor, e não no coração deles.

No português, no latim e em quase todas as línguas, temos uma palavra ou expressão exata para cada coisa, para descrever a coisa em si. Por isso, cuidados ao se tropeçar em grandes expressões que dão “nome” ao que já existe no idioma. Mormente, essas expressões guardam em si a censura, o preconceito e um desejo político abjeto engendrados pelos beneficiários de nosso silêncio.